Crianças e adolescentes na internet: um piano que se toca a quatro mãos

Por Escola da Vila

Uma leitura pouco comum sobre como crianças e adolescentes acessam a internet é associar nossa responsabilidade como adultos ao famoso provérbio africano “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Quando se indaga, no entanto, sobre a origem dessa frase, é difícil identificá-la, porque ela aparece, com semelhanças e variações, entre diferentes povos e países africanos.

Para o povo Iorubá, na Nigéria, a frase na tradição oral é “Omo ni ti ilu, kii ṣe ti obi nikan”, que pode ser traduzida como “A criança pertence à comunidade, não apenas aos pais”; enquanto para o povo Kikuyu, no Quênia, é “Mwana ni wa andu”, que pode ser traduzida como “A criança pertence a todos”.

Pode-se dizer que diferentes culturas tradicionais e saberes ancestrais da África Subsaariana veem a infância e adolescência como um patrimônio comum da humanidade sobre o qual todos e todas nós precisamos zelar conjuntamente como sociedade. Para se referir a essa responsabilidade compartilhada, na equipe de tecnologias da Vila (Tecnologia da Informação e Tecnologia Educacional), temos representado essa mesma imagem como a de um piano que se toca a quatro mãos. De um lado, estamos nós. Do outro, as famílias, a formação em educação digital ampla das próprias crianças e adolescentes e o poder público.

Em agosto deste ano, o criador de conteúdo Felipe Bressanim Pereira (conhecido popularmente na internet e nas redes sociais como Instagram e TikTok como Felca) publicou um vídeo sobre adultização que mobilizou a opinião pública, mas esse assunto não é novo, nem recente.

Muito antes disso, há dois anos, a Lei 14.533/2023 (que institui a Política Nacional de Educação Digital – PNED) alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/1996) ao determinar que a educação digital e midiática deve ser prioridade em nosso país em todas as instituições públicas e privadas de ensino, e que isso deve se viabilizar pela democratização do acesso a dispositivos digitais adequados para uso pedagógico dos estudantes que precisam estar conectados à internet de qualidade para que possam aproveitar as potencialidades das tecnologias a favor de sua aprendizagem num sentido amplo e também se proteger dos eventuais danos e riscos que podem encontrar nos espaços digitais públicos.

Além dessas leis, é importante mencionar como, com seu vídeo, Felca ajudou diversos atores e agentes da sociedade civil a sancionar a Lei 15.211/2025, conhecida popularmente como ECA Digital, e que se soma ao PNED no sentido de proteger crianças e adolescentes na internet. Entre outras questões, essa lei determina que as plataformas disponibilizem recursos de verificação de idade funcionais e adequados para as crianças (a autodeclaração não é suficiente), dispositivos amigáveis de mediação parental e de controle de tempo para as famílias, remoção imediata de conteúdo abusivo e multas altas para as corporações que infringirem leis.

Falar das leis que protegem os direitos digitais de crianças e adolescentes na internet evidencia o papel do poder público nessa questão. Se pretendemos tocar nesse assunto, nesse piano juntos, no entanto, olhar para as leis apenas, não basta. É preciso considerar pelo menos quatro atores envolvidos nessa tarefa: o já mencionado papel dos governos, mas também o papel das famílias, da atuação da escola e também das corporações de tecnologia que precisam assumir sua responsabilidade sobre os serviços que disponibilizam não somente para os menores, mas também para nós, adultos.

Quando se fala sobre o papel das famílias, é recomendável assistir ao primeiro e segundo encontro da live Famílias Conectadas, produzida pelo canal da SaferNet, referência importante em discussões sobre segurança na internet e cidadania digital.

Nesses vídeos, são mencionados os diferentes tipos de intervenções que uma família mais leiga no assunto pode fazer em relação ao tema. O primeiro deles é o da supervisão familiar e abarca os momentos em que os responsáveis param seus afazeres para ver junto com seus filhos o que estão acessando, assistem e jogam junto, acompanham os acessos, curtindo, acompanhando ou questionando o que é visto.

Um segundo âmbito seria o do controle parental, que trata de limites. De dizer não. De cortar e delimitar o que é ou não acessado pelas crianças. Nessa perspectiva, até que o estudante chegue ao 6° ano, recursos como o Family Link atendem a essa necessidade gratuitamente por permitirem limitar tempo de tela, interditar o acesso a certos aplicativos ou a conteúdos na internet, desde que o administrador do equipamento usado seja o responsável, e que a criança acesse um dispositivo com uma conta configurada com sua idade correta e gerenciada pelos pais. O acompanhamento e a supervisão adequados do que a criança acessa gradualmente levarão o estudante ao terceiro nível que é o da autonomia progressiva, quando ele próprio já consegue reunir elementos e estabelecer critérios para cuidar de si e diferenciar o que é ou não adequado para seu próprio acesso.

Uma dúvida recorrente das famílias em relação a esse tema é se existe uma métrica, e qual a medida para estabelecer limites de tempo. Evidentemente, cada casa e cada família estabelecerão limites conforme sua própria realidade e rotina, mas é importante considerar a orientação de especialistas nesse sentido.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tem recomendações de restrição de acesso conforme cada faixa etária, como é possível conferir na tabela a seguir:

Fonte: Dados da Sociedade Brasileira de Pediatria

ambém é recomendável evitar o uso de telas durante as refeições e reduzir, ou proibir por completo, se possível, o uso desses dispositivos nas horas que antecedem o sono.

Outra referência bastante relevante sobre essa questão é o livro Geração Ansiosa, em que, a partir da leitura de um conjunto de pesquisas recentes sobre o tema, Jonathan Heidt, psicólogo social estadunidense, recomenda que a criação de perfis públicos e o acesso a redes sociais seja proibido até os 16 anos de idade.

Em relação aos adolescentes, o Family Link apresenta uma limitação importante. No Brasil, após os 13 anos de idade, a criança é notificada de que poderá usar sua conta Google sem supervisão e interromper seu funcionamento. É imprescindível, nesse momento, que as famílias se organizem em duas frentes: a primeira é utilizar um outro serviço de controle parental que seja adequado para a faixa etária. Há boas práticas reportadas em nossa comunidade sobre o uso de aplicativos como  Qustodio, Mobcip e roteadores de Wi-fi e outras tecnologias que permitem rastrear e limitar o que é acessado pelos adolescentes sobre as quais é possível saber mais detalhes no site de Educação Digital e Midiática da Vila.

Uma segunda frente, sugerida por especialistas, é estabelecer um contrato, um combinado digital comum definido em uma roda de conversa por toda a família em que se pactue quais serão as regras de uso de telas para todos e todas que vivem na mesma casa. Alguns exemplos de combinados que podem ser feitos nesse documento coletivo a ser escrito junto por crianças, adolescentes e responsáveis são: não usar tablet ou celular na hora das refeições, durante passeios, ou quando duas pessoas estiverem conversando. A respeito do uso dos celulares, produzimos um guia que pode ajudar nessa conversa e que pode ser acessado aqui. Escrever e até mesmo ilustrar esse texto junto com as crianças pode ser uma estratégia eficaz de implicar toda a família no cuidado com a nossa economia de atenção em relação a essas plataformas, porque também nós, adultos, estamos implicados em um uso demasiado dos dispositivos digitais e fica difícil estabelecer limites quando nós mesmos não conseguimos delimitar o espaço que esses recursos podem ter em nossa vida cotidiana.

ocarmos esse piano juntos também é termos consciência de que nossa atenção, como aponta o historiador estadunidense D. Graham Burnett, é vista pelas plataformas como um commodity, um produto altamente lucrativo para o qual muito dinheiro em tecnologia e design é investido com o propósito de que as pessoas fiquem cada vez mais tempo conectadas de modo passivo, como espectadoras e consumidoras de conteúdos sem fim.

Nesse cenário, como sociedade civil, no entanto, é fundamental nos organizarmos para exigirmos do poder público e dos políticos que nos representam que cobrem e trabalhem pela regulação e regulamentação das redes sociais e das plataformas que usamos para que se possa aproveitar, desde a infância, o que os recursos digitais têm de melhor. Também é imprescindível tomarmos consciência de que nós somos essa aldeia mencionada pelo provérbio da tradição oral africana e que precisamos juntos, – famílias, escolas, poder público e corporações de tecnologia – dividir essa responsabilidade partilhada de cuidarmos de nossas crianças e adolescentes na internet.

Leia o conteúdo na íntegra no site da Escola da Vila.

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