Educação celulária

Por Escola da Vila 

Em 2007 foi lançado o primeiro iPhone. Houve outros lançamentos e outros produtos marcantes nos últimos vinte anos, mas tomemos esse como referência para pensarmos um pouco na divulgação desse novo instrumento em vidas nossas. 

Desde o seu lançamento até o tempo transcorrido para que ele e seus concorrentes penetrassem nos bolsos de cada habitante da Terra, houve um intervalo de, talvez, uma década. Posso dizer com certeza que em 2017 todos os estudantes do Ensino Médio já faziam uso habitual de um  smartphone

Em todo o caso, de ano em ano, a idade de aquisição por parte do público infantojuvenil foi avançando exponencialmente, chegando até o Fundamental I. Inclusive porque as casas vão se enchendo de aparelhos que ficam ultrapassados, e os adultos vão adquirindo novos modelos. Os que sobraram foram para os rebentos. E isso talvez já tenha mudado. Acredito que o  smartphone  já tenha se tornado um item essencial para as crianças, e não mais um aparelho velho com o qual brincar. E digo  smartphone , porque o surgimento deste foi o óbito do telefone celular, que se prestou apenas a substituir os orelhões. 

Enquanto isso, nas escolas, os  smartphones  também se tornaram um item tão presente quanto um estojo, uma caneta ou um caderno. Esquecê-lo em casa é tão impensável como sairmos, deixando, a nossa própria mão na pia da cozinha, na mesa da sala ou debaixo da cama. Sair sem celular não é uma opção e, inclusive, andar dentro de casa sem ele também chega a ser estranho. 

Os professores e as professoras veem-se diariamente perante um público que tem esse produto como parte não apenas do corpo físico, mas como uma extensão do cérebro. Empresas se esforçam para enfiar um chip dentro do cérebro, do fígado ou saber se lá de onde mais. Tudo bem. Em algum momento, vamos enfiá-lo em algum lugar dentro do nosso corpo. Por agora, é mais ou menos como um aro em cima da mesa. Ele está lá. Cada um com seu órgão exposto. Assim é no restaurante, no escritório e em uma sala de aula. 

Dizer que o celular deve ser guardado na mochila é uma tarefa hercúlea. Pode até ser possível, mas rapidamente ele volta para o dono ou para a dona, como um camundongo fiel. 

Lembro-me de um personagem no filme “Alcatraz, fuga impossível”. Tratava-se de um velhinho simpático, amigo do Clint Eastwood, que tinha um roedor como parceiro. Ele estava sempre em algum bolso do uniforme, aparecia andando no ombro para ganhar umas migalhinhas de pão no café da manhã, dormia junto ao corpo do bom homem para aproveitar seu calor em uma relação de companheirismo inexpugnável e impenetrável. 

Pedir, exigir, ordenar que alunos e alunas mantenham-se longe de seu verdadeiro parceiro é uma tarefa árdua, para a qual é preciso esquecer as fórmulas, os autores, os fatos históricos e dedicar-se assim a docência a esta atividade: aguentar uma hora sem celular. É exaustivo, e os resultados são pífios. Punição? Voltaremos a isso em seguida. 

O fato é que, neste ano, implementamos um suporte – cujo nome ainda está por ser definido – em cada sala de aula. Essa peça é uma sapateira do tipo tradicional, de pendurar na porta do quarto, mas, ao invés de sapatos, ela contém um item ainda mais importante do vestuário: os celulares. Como chamar esse  treco ? Eu chamaria de celular, pois é uma espécie de bicicleta de celular. Não é muito bem. Talvez seja um suporte, palavra que também não me convence muito. Mas vamos chamar a palavra que sair. 

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Esse  treco,  importante dizer, foi recebido com relativa tranquilidade por parte de alunos e alunas. Queixas? É claro que sim. Mas conhecemos as toneladas das queixas dos nossos estudantes, essas não foram das mais energéticas. 

A tentativa de ludibriar colocar outros objetos para escapar à vista dos professores e professoras também era esperada. Mas isso convive também com outra impressão: parece ter sido um bom lugar para se guardar esse elemento que é o filho dos nossos filhos e filhas. 

Os celulares ficam à vista, expostos verticalmente na parede em um plástico transparente. Cada aparelho em sua casinha. Uma colmeia que permite a seus donos e donas verem de longe que seu ratinho está a salvo, ao alcance da vista, embora não se preocupe ao alcance das mãos. 

Será que o fato de estar no raio de visão dá mais tranquilidade do que tê-lo fisicamente próximo, dentro da mochila? Vejamos: o que pode ser melhor para uma mãe quando seu filhote está se adaptando à escola: que ele fica bem perto de portas fechadas, ou mais distantes, porém possível de ser visto por uma janela? Não era assim nas aulas de natação? O pirralho nadava em uma situação geralmente fora do alcance materno, mas, através de algum vidro, dava para ver que ele estava vivo. Acredito que esta seja a melhor opção. Em todo caso, assim parece ser para os alunos e ex-alunos. Ouso dizer que houve certo rompimento por parte deles, com essa medida. Melhor do que ficar tomando bronca para guardar o aparelho na mochila é tê-lo fora do alcance e, vejam só, distrair-se um pouco menos durante a aula. 

Alguns deles disseram: “Mas eu posso me distrair sem o celular também!” É claro que sim. Isso é parte inerente à atividade do estudante, à vida escolar, ao cotidiano, enfim. Distrair-se rabiscando as bordas do caderno ou passando bilhetinhos, conversando ou simplesmente pensando. Mas vejam os verbos que foram utilizados nessa sentença: eles pressupõem uma ação por parte do sujeito. Os celulares não são uma folha em branco, eles são ativos. 

A lógica de todo aplicativo é que você gasta tempo com eles. Quanto mais tempo ficarmos no Whatsapp, no Instagram, em um aplicativo de meditação ou em uma plataforma de vídeo, mais bem sucedidos foram seus desenvolvedores. Com uma honestidade assustadora, o cofundador da Netflix afirmou, em entrevista ao The Guardian que o maior concorrente da empresa não é a HBO ou a Prime Video, mas o tempo de sono que o ser humano ainda precisa para viver. 

O cérebro humano precisa de segurança, e isso é um problema a ser combatido. Aplicativos e plataformas de filmes de continuação de seu passo agressivo para ocupar também esse pedaço de nossa existência. Há ainda um território a ser consumido por esses cupins. Madeira mais dura essa, a das horas de sono, mas há compromisso. 

Pois bem, um celular ao alcance da mão é isso. Um ente que capta, por atividade própria e incessante, a nossa atenção e a mantém ali, agarrada. É um aparelho divertido e muito útil, mas também é perturbador. Atribuo a isso a minha impressão de que houve certo problema por parte do alunado em relação a essa medida. Se estou enganado quanto a isso, faça-me saber, sou tudo ouvido.

Mas por que esse assunto já não foi resolvido antes? Por que os educadores e educadoras não puniram com advertências e suspensões todos os que encostavam no celular? Por que a escola não proibia definitivamente a presença do aparelho e pronto?

A abertura é um elemento importante na educação. Mas ela sozinha não é nada. Ela é apenas uma ação que prejudica a vida do aluno ou da aluna. Sem significado, ela se torna apenas algo a ser driblado. Existem punições em nossa escola, e os alunos e alunas as evitam e se constrangem muitíssimo diante delas, justamente porque 80% das vezes estamos empenhados em que eles entendem o sentido das regras. Tais princípios são mais importantes que a proteção em si. Quando isso ocorrer, ela já deverá ter um significado que vai além de um prejuízo documental (uma advertência) ou de um castigo familiar (um fim de semana sem sair). 

E quanto à entrega de levar o celular para a escola? Isso já ocorre na Vila das Infâncias. Na Vila das Juventudes, a lida com as medidas restritivas ganha outro sentido, já que estamos na outra faixa etária. 

O celular é uma ferramenta prática, e proibir alguém de 13, 15 ou 17 de portar o aparelho é quase tão impactante quanto pedir isso a um adulto. Basta ver como cada família negocia isso dentro de sua casa. A tensão que tal medida poderia gerar seria maior e ganharia mais espaço do que uma proposição que procura preservar a sacralidade da sala de aula. Talvez seja importante pensar se há, em casa, algum espaço em que seja proibido. Na minha própria experiência doméstica, sentar-se à mesa é esse momento sagrado – sem celular, portanto. No restante do tempo, ele avançou com a mesma força que avançou no mundo. Até aí estamos. Cada família deve ter seus sucessos e fracassos – até porque se trata de uma negociação não apenas com os demais, mas com nós mesmos e nossa própria necessidade de carregar esse camundongo para cima e para baixo. 

Logo, propor a eliminação do aparelho na instituição escolar é algo que parece mais uma resolução simplista diante de uma contingência cultural de peso, que consiste em uma transformação comportamental e cognitiva sem precedentes. No mínimo, é passível de bastante discussão, pois cada segmento educacional e cada educador devem ter ainda opiniões bastante divergentes a esse respeito. 

Fundamental considerar que a escola não é uma ente que responde com instantaneidade aos anseios que emparelham no senso comum. As escolas precisam amadurecer os direcionamentos e agir a partir de uma certa base conceitual que sustenta a formação que dá aos estudantes, não podem sair tomando medidas de senso comum. As escolhas não podem se prestar a agradar os alunos e alunas, não podem ser o caminho mais fácil, não podem ser por iniciativa individual e espontânea de algum educador que tente resolver sozinho com uma ideia de sua cabeça. A escola tem a obrigação de agir para educar, com coerência e consenso interno, e isso, quando se quer um mínimo de consistência, toma tempo.

Preservar a sala de aula com a razoável conivência dos próprios alunos e alunas parece ter sido já uma conquista digna de nota. Veremos como segue essa aventura civilizatória. 

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