por Escola da Vila
A cena, ou conjunto delas, aconteceu nos anos 80, em uma escola pública na periferia de São Paulo.
Um garotinho negro, filho de uma empregada doméstica e um pai eletricista, frequentava essa escola desde a educação infantil, que na época era carinhosamente chamada de “prezinho”. A classe social do garoto era a mesma de todos os outros estudantes; e o percentual de alunos e alunas de pele escura era proporcional ao número de pretos e pardos na sociedade brasileira. A discussão tematizada em função do racismo era muito pequena no Brasil, mesmo em escolas públicas; em escolas privadas, onde o percentual de negros e pardos era muito inferior ao populacional, esse tema dificilmente ia para a pauta.
O Brasil sempre se classificou como uma democracia racial e, portanto, era difícil concordar que o racismo existia. “Somos todos iguais” era uma das frases mais ouvidas e mencionadas no país. Mesmo assim, em um belo dia, aquele menino começou a ser chamado, em um ritmo incessante, de “macaco”, “urubu” e “anu”. Nomes que saíam da boca daquele que, até então, era o seu melhor amigo na instituição, um menino branco, considerado por muitos o mais bonito e inteligente da escola, mesmo tendo notas bem inferiores às do menino preto.
Ninguém sabia o motivo pelo qual ele começou, mas todos percebiam o quanto ele era estimulado a continuar — cada vez que a sequência era proferida, os outros alunos e alunas da sala desabavam em gargalhadas, das mais desmoralizantes. Aquilo foi agindo como uma arma acuando o garotinho negro, até que ele não aguentou e desabou a chorar. Sua vontade era de nunca mais frequentar aquele lugar. Não fazia sentido. O que para muitos ali era uma brincadeira, na verdade, era uma insistência em diminuí-lo e colocá-lo no patamar de um animal. E tudo isso tendo como única justificativa a cor da sua pele.
Pela primeira vez, ele percebeu o quanto a escola realmente era um recorte representativo da sociedade, e ali ficou evidente: a sociedade é racista e dá a impressão de não querer que aqueles mais escuros se sintam integrantes dela.
Quando chegava em casa, o menino não cansava de repetir para a sua mãe e seu pai o quanto odiava a escola, o quanto nunca mais queria ir para aquele lugar, o quanto era doloroso sair de casa e ser alvo de humilhações inexplicáveis.
Essa história, datada e geograficamente demarcada, poderia ser transferida para qualquer outra época e outra região do Brasil. Ela ainda é a história da grande maioria das crianças negras brasileiras em idade escolar.
Mas, algumas escolas começam a se mexer e buscam ter uma postura diferente. A Escola da Vila é uma delas — e essa busca não parte só da escola, mas também do corpo estudantil e da comunidade de famílias.
Na estrutura da escola, hoje existem três grupos focados na implantação e realização de uma educação verdadeiramente antirracista: o NAA, Núcleo de Ação Antirracista de famílias; o Grupo de Trabalho de funcionários e funcionárias, conhecido com GT Interno; e Coletivo Ayô de estudantes.
Eu, Pablo Soares Damaceno, hoje diretor da Vila das Juventudes, sou o menino mencionado no começo da história. E, juntamente com Patricia Souza, mãe da escola e representante do NAA, falaremos um pouco sobre esse processo dentro da escola.
Pablo: Patricia, o que é e como surgiu o Núcleo de Ação Antirracista de famílias da Escola da Vila?
Patricia: Em julho de 2020, quatro mães se reuniram para pensar caminhos para uma educação antirracista que transformasse toda a comunidade Vila. Apesar de virtuais, esses encontros criaram um vínculo entre o grupo, que cada vez atraía mais pessoas, tanto aquelas engajadas na causa como outras que queriam demonstrar apoio e acompanhar as novidades, mesmo sem poder participar ativamente. Esse movimento nasceu entre a comunidade de famílias, mas, desde o início, vem dialogando e se articulando com a comunidade escolar, tanto com a gestão e as equipes como com o grupo de estudantes, que se reúnem no Coletivo Ayô. E como nasceu o GT interno? Como são trabalhadas as práticas pedagógicas que problematizam a questão racial na Vila?
Pablo: Na Vila, podemos dizer que o pontapé inicial foi em meados de 2020, com um texto da Fernanda Flores no blog da Escola. A produção do texto foi marcada por um pedido de revisão dela para diversos funcionários negros e, naquele momento, vieram à tona diversas realidades que eram desconhecidas pela maioria não negra da escola. Paralelamente a tudo isso, vivíamos uma movimentação mundial sobre o racismo, ou seja, campo fértil para a discussão do assunto.
Juntamente com isso, veio a reflexão de que a escola não tinha uma percepção que aquilo que era feito até o momento não era uma educação antirracista. E várias ações pedagógicas foram propostas pelos professores e professoras, culminando com a SAD Preta (SAD é Semana de Atividades Diversificadas), em 14 de julho de 2020. Ao mesmo tempo, começou o contato com o grupo de mães fundadoras do NAA.
Em agosto, o GT de funcionários foi formado e, assim como o NAA, começou a pensar em ações e criou uma agenda de atividades para 2021.
Do ponto de vista pedagógico, os professores e professoras já vinham analisando e fazendo alterações curriculares, com base na lei 10.639, que exige que a temática de história e cultura afro-brasileira e africana esteja presente, e também com foco maior na busca de mais protagonismo de autores negros, algo que é muito perceptível em nossas práticas de leitura. E o NAA também vem dando bastante suporte à escola nesses novos esforços, fazendo pontes com outros atores da luta antirracista, né?
Patricia: É verdade. O NAA integra a Liga Interescolas por Equidade Racial, que reúne coletivos de famílias de diversas escolas particulares de São Paulo. Foi através da Liga que entramos em contato com a Ação Educativa, a ONG que desenvolveu a metodologia de diagnóstico participativo das relações raciais no ambiente escolar. Esse contato com outros conhecimentos e outras experiências tem sido muito enriquecedor. A gente estuda, debate, troca impressões e estratégias para mobilizar nossas comunidades… É um espaço de muito aprendizado.
Aliás, o que a gente mais faz como NAA é aprender. Aprendemos entre nós, conversando e tocando projetos, e também aprendemos com profissionais e especialistas nos eventos de letramento racial que organizamos. Acho que muita gente tem receio de se aproximar porque pensa que não sabe nada sobre a luta antirracista. Mas não precisa saber, só precisa querer saber. No Núcleo tem gente que já tem um histórico, mas também tem gente que abraçou recentemente essa causa. E não é pra menos, se a grande maioria das famílias da escola é branca!
Pessoas brancas normalmente são criadas sem pensar em raça. A racialização não é uma questão que costuma emergir naturalmente em famílias brancas. Mas não são só pretos, pardos, amarelos e indígenas que têm raça. Os brancos também têm, só que não foram ensinados a se ver como pessoas racializadas. Geralmente se veem como norma. Quem se espanta ao entrar em uma escola particular e só ver pele branca? Pessoas negras, como o meu sobrinho de 9 anos, quando se mudou de cidade e foi conhecer a nova escola: “Nesta escola todas as professoras são loiras, né, mãe?”. Mas uma pessoa branca entraria naquela mesma escola e acharia “normal”. A norma.
E não dá para desassociar essa noção do branco como a norma da noção de privilégio branco. Enquanto crianças e adolescentes brancos forem criados considerando que é normal só ver pessoas brancas à sua volta, não vão entender que tudo aquilo a que têm acesso deveria ser acessível para todas as crianças e adolescentes, de qualquer cor e origem. É urgente começar a cutucar essa molecada para que passem a enxergar as condições privilegiadas das quais se beneficiam. Quando a gente enxerga a estrutura do racismo, não consegue mais ignorar. Precisamos que as novas gerações enxerguem e reconheçam a existência do racismo, porque só assim entenderão a necessidade de lutar contra ele. O evento do dia 4 de junho, o diagnóstico coletivo sobre a qualidade das relações raciais na escola, foi o primeiro passo.
Pablo: O que o NAA espera alcançar?
Patrícia: Desde o início do Núcleo, a gente tem uma visão muito nítida do que gostaríamos de ver acontecer na Vila, que é uma transformação de base, profunda, sustentável, que transborde e influencie também as famílias de estudantes, os círculos de amizade e, no futuro, suas esferas de atuação na sociedade. Essa transformação de base é um trabalho lento, mas tem que ser constante. E tem que ser potente. Os 500 anos de história que resultaram em um Brasil praticamente segregado têm um peso enorme; contra esse peso, precisamos de muita força. Não vai ser da noite para o dia, mas já devia ter começado lá atrás. Estamos atrasadíssimos nesse ajuste de contas.
Se nascemos e vivemos em um país onde mais da metade das pessoas é afrodescendente, mais da metade de qualquer espaço social deveria ser ocupada por afrodescendentes — as escolas particulares, as universidades, os altos cargos executivos, o Congresso Nacional, os diversos escalões do governo, o judiciário, até as páginas de revistas, as capas de livros, as cenas de novela. Aceitar a predominância absoluta de não afrodescendentes é botar a rubrica no contrato do racismo. Não existe justificativa moral para essa desigualdade de acesso ao bem-estar, aos direitos humanos, à cidadania e ao poder.
Então eu acredito que a nossa busca, como NAA, é despertar na comunidade da Vila o senso de urgência para reparar essa injustiça tão antiga que ameaça diariamente a dignidade e a integridade física e psíquica da população negra, o que acontece também com as pessoas negras que fazem parte da comunidade da Escola da Vila. É pelo direito delas a essa integridade, tanto como pessoas quanto como grupo, que a gente luta. E a Vila, o que espera alcançar como escola?
Pablo: No nosso país, 56% da população é negra, mas, nesse universo de pessoas negras, 91% estudam em escolas públicas, 89% nunca fizeram um curso de idioma e 74% nunca passaram por um processo de qualificação profissional, apenas para citar alguns dados do ponto de vista educacional. Se avançarmos para questões de violência pública, basta olharmos para a incrível marca: de 82 jovens mortos diariamente, 77% são negros. E mesmo assim, muitos negam a existência do racismo.
Na Vila, acreditamos cegamente que só a escola pode mudar esse olhar e essa maneira de pensar. Baseado na fala de Sueli Carneiro, ser antirracista é um tripé: não negar a existência do racismo, porém não permitir que ele avance e nem temer uma sociedade mais pautada na equidade.
Para isso, os primeiros passos são os que estamos fazendo atualmente com toda a nossa comunidade, estudantes, famílias e equipes, que é expandir o conceito de letramento racial, que são ações que buscam permanentemente perceber os impactos do racismo em nosso cotidiano, e reforçar o posicionamento de sermos todos parte do problema e de sua solução. A Vila busca mostrar para todos que compreender termos como branquitude, racismo estrutural, política de embranquecimento, entre outros, ajuda a nomear o problema e tirá-lo da sombra. Conhecendo o vocabulário sobre o tema é possível conversar, aprender e questionar as hierarquias raciais que nos cercam, e eu repito mais uma vez a grande importância da instituição escolar em tudo isso.
Resumindo: queremos fomentar a preocupação, o envolvimento e o sentido de responsabilidade em todos os envolvidos diretamente com a escola na luta antirracista e também sermos referência para outras pessoas e escolas, podendo mostrar que isso é possível.
Aproveitamos a oportunidade para desejar boas férias à nossa comunidade, nosso blog também terá uma pausa, voltamos com ele em agosto!
(Imagem: Drazen Zigic/iStock.com.br)