Conversar sobre tudo

Por Escola da Vila

Texto de Fermín Damirdjian, Orientação Educacional do Ensino Médio

Ensinar alguém a andar de bicicleta é algo esquisitíssimo. Tanto quem aprende como quem ensina não têm, via de regra, conhecimentos claros sobre todas as forças que estão em jogo nesse momento. Mais ainda se pensarmos que, na maioria das vezes, isso ocorre entre um adulto e uma criança, que, nessa situação, pode ter qualquer coisa entre 3 e 5 anos, em uma generalização grosseira. Seja como for, não se trata de dar explicações teóricas sobre a incidência do movimento para então encontrar o equilíbrio. É, inclusive, um grande paradoxo o fato de que precisamos estar em movimento para não cairmos. Deslocar-se montado em um aparelho sem apoio lateral causa mais apreensão do que estar parado. Mas para iniciar esse movimento, é preciso imprimir a primeira pedalada, tirando um dos pés do chão para não se enroscar no pedal, e também para que ambas as pernas trabalhem juntas e, estando por fim em movimento, perceber que este gera equilíbrio. Tudo isso com frio na barriga e um zigue-zague incompreensível – porque também tem a parte dos braços comandando a direção. Nada disso pode ser explicado. É para aprender experimentando. E caindo. Não tem outro jeito.

Muitas situações são assim na vida. Hoje, é muito comum ver algum estudante afastado dos amigos durante o recreio, com o celular na mão, conversando com seu pai ou sua mãe sobre questões que estão acontecendo na escola, seja porque um professor o repreendeu, seja porque tirou uma nota baixa, porque os amigos foram jogar bola sem chamá-lo ou alguma amiga lhe virou a cara. Sabemos também que as conversas-desabafo que se dão no carro ou na cozinha de casa são temas que se estendem e geram longos debates entre pais e filhos a respeito de suas experiências cotidianas. Os temas avançam sobre relacionamentos, conquistas, desamores, e ainda para certo detalhamento da vida sexual, talvez ainda incipiente, talvez mais desenvolta. Tudo isso com as devidas barbeiragens e tropeços típicos da idade – ou da vida mesmo.

A analogia entre aprender a andar – ou pedalar – com as próprias pernas, a partir de um adulto que oferece alicerces e evita tombos mais sérios, é um lugar comum que não cansamos de usar. Mas não vou me deter nisso. Vou avançar para um questionamento que devemos fazer sempre que nos propomos a educar: qual é o nosso alcance de ação? Qual deve ser a nossa escuta? Até que ponto é de alguma serventia que um filho ou uma filha compartilhe os detalhes de sua vida afetiva com os pais e as mães? O que fazemos com tudo o que ouvimos?

Podemos inferir alguns aspectos que motivam os adultos a conversarem sobre temas íntimos com os filhos. O primeiro deles, o simples compartilhamento como uma forma de desfrutar a vida através deles. Ora, depois que alguém aprende a andar de bicicleta, nada de errado em que esse ato se repita ao longo da vida com seus genitores: ir a um parque, explorar a cidade, fazer uma jornada mais longa em estradas rurais, ou uma meta mais esportiva, como subir o pico do Jaraguá. Afinal, temos filhos também para isso: aproveitar uma companhia, um elo afetivo que se desenvolve em uma saga educacional e que se reverte em alguns bons momentos de diversão e de cuidado ao longo da vida. Sendo assim, podemos inferir que conversar sobre a aventura de viver os afetos cotidianos, bem como os conflitos e as conquistas escolares ou pessoais, é algo a ser desfrutado.

Ocorre, no entanto, que as vicissitudes que se dão entre uma filha e seu namorado, ou ficante, ou com suas amigas, envolvem uma intimidade que não está presente em uma pedalada de fim de semana com a família. E os pormenores dessa vida íntima são intensos. Os tombos são grandes. Cometem-se imprudências e frequentemente nos machucamos. Como uma mãe ou um pai consegue ajudar o filho a ponderar sobre a vida ouvindo isso? O fígado de um filho dói no fígado de um pai. O esforço, quando um filho está com dor de barriga, é o de estarmos mais seguros em relação a esse desconforto físico. A nossa atitude segura transmite que aquilo não é tão grave e pode-se seguir em frente. Mas quando o acompanhamento em tempo real se dá de forma tão frequente quanto o aprofundamento em cada sensação de desconforto, abrem-se buracos fundos que nem sempre esses mesmos adultos conseguem limitar e não conseguem oferecer saídas. Até porque há situações que não têm necessariamente saídas. É aguentar frustrações, mesmo.

Um desabafo na cozinha dói no ouvido de qualquer adulto, especialmente depois de um longo dia de trabalho. É para isso que nos esforçamos tanto? Para que um professor repreenda meu filho? Quero que ele volte feliz da escola, que ele saiba estudar, que ele seja estimulado, que a escola crie o engajamento dele na jornada do conhecimento – coisa que eu, exausto, não consigo fazer, porque eu não sou uma escola. Sou um engenheiro, advogado, jornalista, qualquer coisa, mas não sou uma instituição educacional. Não dá para ele voltar de lá, se queixando de um professor injusto.

A minissérie Disclaimer, atualmente disponível em uma plataforma de streaming, é primorosa em demonstrar a versão que construímos de nossos filhos. Aos nossos olhos, eles podem ser muito diferentes daquilo que apresentam nos corredores da escola, nas relações afetivas e sexuais, ou dentro da sala de aula. Mas o desabafo na cozinha entra direto nas vísceras de uma mãe ou de um pai, sem esse filtro, sem a consideração de que o filho também está exausto de um monte de coisas, e ele dispara a artilharia de desgraças em cima de seus pais, pura e simplesmente, porque eles estão aí para aguentar. Mais ainda: esquecemos de considerar que nossos filhos também podem machucar um outro em uma relação amorosa, e que podem ser desrespeitosos com um professor. Em conversas em público, podemos até considerar isso, mas, lá dentro de nossas entranhas, essas possibilidades estão bem adormecidas.

Na sala da Orientação da escola, outro dia, uma aluna me contava das agruras que vive com a turma da classe. Risadinhas quando ela levanta a mão para falar, patadas durante um trabalho em grupo, desconsiderações nos grupos de whats, exclusão em festas. Era uma queixa contra o grupo-classe, que ela também ampliou para “as meninas de minha idade, minha geração”. A coisa era ampla e séria. Feito esse acolhimento, eu parti para outro capítulo: como ela é com os amigos? Faltava esse componente em seu relato – este não era uma ponderação, mas um grande desabafo. O passo seguinte é ela se colocar no lugar dos outros. Eu bem sabia que as queixas dos colegas em relação a ela não eram poucas e estiveram muito presentes em minha sala ao longo do ano. Não se trata de procurar quem é o culpado da situação, mas de que todas as partes se responsabilizem pela cena. Dois movimentos, portanto, são igualmente importantes ao ouvir uma queixa: acolher e responsabilizar.

O mais frequente é que os pais fiquem no primeiro aspecto, em um acolhimento amplo e irrestrito, sobre o qual os jovens avançam de forma também irrestrita. É difícil, sim, dar contornos, reconhecer a frustração de ver um filho machucado por esse exercício infernal que é estar no mundo e aguentar uma amiga que vira a cara, um professor que não concede a nota que gostaríamos ou mesmo outros elementos não tão frustrantes, mas muito íntimos.

Em Disclaimer encontramos, em uma narrativa primorosa, o grande contraste entre o filho que vemos e o filho que temos. Entre um e outro, muitas vezes, há um abismo. Ficamos, via de regra, no primeiro. Isso por um lado. Por outro, esse acesso à vida íntima pode ser muito, muito aflitivo, e só desperta mais incômodo. E gera um círculo vicioso, no qual queremos cenas do próximo capítulo, para saber como anda a relação com a amiga que brigou, ou se o ficante está sendo rude demais com minha filha, ou se passam a bola para ele na quadra, ou ainda como está a reputação dele ou dela com seus pares, ou até mesmo na internet – afinal, são as coisas que tornam minha filha mais feliz ou infeliz.

Por fim, um novo elemento que instiga o acesso a tantas intimidades e pormenores: reviver a juventude através deles. Realizar tudo aquilo que não realizamos como gostaríamos, aproveitar mais, errar menos. Acertar melhor nas amizades, na vida amorosa, na escola e, inclusive, nas transgressões. A glorificação da juventude, tão presente como modelo de vida a ser eternizado por nossa cultura, abre-se como uma possibilidade quando nos identificamos com a vitalidade, espontaneidade e ingenuidade de nossos filhos perante a vida.

Tudo isso mobiliza, acredito, pais e mães a acompanharem seus filhos em tempo real. Uma aluna sai de uma prova de Química na qual foi mal, chorando, e liga para a mãe. Não houve o amparo dos colegas, ela não esperou encontrar a mãe no final do dia, quem sabe ela já se conformaria e absorveria o impacto da decepção. É chorar e ligar. Agora, pensemos: somos amigos deles? Ou somos educadores? Ou essa cisão é uma bobagem? Ora, se somos amigos, então eles também poderiam – ou deveriam- acompanhar nossa vida íntima. Que amizade seria essa, em que eles contam os pormenores de seu namoro, e os pais não compartilham com eles o que vivem no foro íntimo? Os filhos deveriam saber em detalhes as vicissitudes do casal – ou do ex-casal, não importa – que os colocou no mundo? Acredito que a primeira resposta que vem à cabeça é que não. E por que não? Porque isso não seria nada além de um desabafo desse adulto. Compartilhar a vida íntima de um adulto com um jovem de 15 anos não faz sentido algum. Talvez porque ele pouco possa aconselhar, por sua experiência de vida, talvez porque seja coisa demais para ele processar, talvez porque haveria muito afeto e identidade envolvidos. Ou quiçá a resposta seja, pura e simplesmente, porque não lhe corresponde tratar desses assuntos.

Todas essas respostas seriam válidas para tentar entender por que uma mãe não compartilha os detalhes de sua vida sexual ou mesmo profissional com sua filha. Mas é preciso considerar que essas tais respostas também podem se aplicar a esses pais que avançam nesses temas com seus filhos. Convém não saber tanto. Não significa que devam ser distantes, frios, autoritários, nada disso. Uma coisa é ter algumas conversas sobre a vida; outra, é saber de tudo, como se essa mãe fosse uma amiga. Diferentemente de uma amiga, a mãe educa, o pai educa, os papéis são muito diferentes. E, como educadores, devem se perguntar se devem impedir todos os tombos dos filhos, se aguentam ouvir e não sofrer junto, se os filhos não precisam desenvolver sua vida íntima e suas decepções sem consultar a mãe no celular em tempo real, se esse compartilhamento não está a serviço de um anseio do adulto de ser jovem de novo e de superproteger os filhos.

Cabe aos pais e mães se perguntarem se realmente lhes corresponde entrar em certos assuntos.

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