A seriação de aluno com deficiência deve ser decidida em conjunto pela escola, a família e os profissionais que o acompanham. É o que propõe o professor de filosofia Francisco José Carbonari, ex-integrante do Conselho Estadual de Educação (CEE), em artigo elaborado especialmente para a Abepar. Leia a seguir a íntegra do artigo.
Seriação de alunos com deficiência
Francisco José Carbonari (*)
Novembro de 2018
“Nos últimos anos, o Brasil avançou significativamente nas políticas públicas de atendimento educacional às crianças com deficiência no seu desenvolvimento. A antiga concepção de reuni-las em classes e escolas especiais, ou isolá-las em suas próprias residências, foi sendo transformada por novos estudos, exigências legais e implementação de políticas que explicitaram a importância de incluir essas crianças no sistema educacional, estimulando a convivência com as demais. Este processo trouxe ganhos extraordinários para todos os envolvidos no processo escolar.
Entretanto, se por um lado a inclusão da criança com deficiência na rede escolar regular tornou- se irreversível e significou um grande avanço na proposta de uma educação para todos, por outro, sua concretização dentro da escola, da forma como está organizada hoje, ainda não superou todas as dificuldades e nem todas as divergências foram pacificadas. Permanecem ainda questões que precisam ser discutidas e aprofundadas, se realmente quisermos uma educação que inclua a todos. A análise do processo de seriação dessas crianças é uma delas.
Para contribuir com o debate, apresento aqui dois aspectos do tema seriação, para reflexão: 1) Como proporcionar o melhor espaço de convivência dentro da escola, de forma que a criança com deficiência possa se desenvolver plenamente? 2) Quem pode – e deve – decidir o que é melhor para o desenvolvimento da criança com deficiência durante sua trajetória escolar?
A primeira questão remete ao fato de que essa nova maneira de tratar as crianças com deficiência, trouxe a necessidade de mudanças tanto na forma de organização da escola, quanto no posicionamento de professores e equipes pedagógicas. O enfrentamento dessa nova realidade exigiu diferentes olhares e posturas que nem sempre ocorreram sem conflitos.
É bom ressaltar que esse novo posicionamento não significou o fim das escolas que atendem especificamente essas crianças. Elas não perderam sua razão de ser e o trabalho de entidades como as APAEs demonstra que esse atendimento especial continua importante. Mas o olhar sobre esse trabalho também mudou e elas precisam ser vistas numa outra perspectiva.
Já a segunda questão se refere a um problema que, a meu ver, não está sendo devidamente encaminhada: trata-se de identificar a quem cabe decidir sobre o processo de alocação desses alunos nas diversas etapas da escolarização, isto é, a seriação.
Aqueles que acompanham as manifestações do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE), órgão regulador e última instância para recursos administrativos do sistema educacional paulista, devem ter percebido, como era de se esperar, que houve um aumento significativo no número de consultas e recursos referentes a procedimentos no atendimento a alunos com deficiências no seu desenvolvimento escolar. As consultas e os recursos feitos, na maioria das vezes, pelas famílias e escolas ou até pelos próprios órgãos da Secretaria da Educação (SEE), não raro manifestam dificuldades na interpretação legal do tema ou no encaminhamento de determinados aspectos ainda não suficientemente esclarecidos.
Dentro dos vários pontos discutidos, um tem chamado a minha atenção. São as solicitações para a autorização de matrícula de alunos com deficiência em seu desenvolvimento em determinada etapa do Ensino Fundamental, particularmente nos três primeiros anos, independente da idade.
A análise dos processos que tramitam no Conselho sobre essa questão mostra que a maioria das solicitações é para que seja autorizada a permanência da criança no mesmo ano cursado e vem sempre acompanhada de laudos psicológicos e avaliações médicas, que indicam a inconveniência da sequência para a etapa escolar seguinte, como condição para o seu melhor desenvolvimento pessoal. Esses recursos chegam ao CEE por divergência entre as escolas e as famílias em relação ao posicionamento dos órgãos da Secretaria da Educação que, na interpretação da norma, entendem que nenhuma criança pode permanecer no mesmo ano que já cursou.
Numerosos pedidos nesse sentido chegam à deliberação do CEE, principalmente após a Edição da Resolução CNE/CEB nº 07/2010 e do Parecer CEE nº 285/2014, que sustentam que os três primeiros anos do ensino fundamental constituem um bloco único e que o aluno não pode ter interrompida sua trajetória por deficiência no aprendizado. A interpretação dessas normas pelas Diretorias de Ensino e pelos órgãos centrais da SEE sempre foi no sentido de que essas crianças, independente da situação em que se encontram, das avaliações de especialista a que se submeteram ou qualquer análise de mérito, não podem permanecer no mesmo ano cursado, por determinação legal. O pressuposto é que a política de inclusão se aplica a todas as crianças e, nesse sentido, nenhum aluno pode ser matriculado no ano incompatível com sua idade e nem ter interrompido seu caminho dentro da sequência estabelecida para todos os alunos, independente da circunstância, da avaliação da escola ou do desejo da família.
As escolas, embora acatem este posicionamento da SEE, muitas vezes se vêm em situações conflitantes em relação às famílias, aos profissionais que acompanham a criança ou até mesmo com seu projeto pedagógico, que indica um outro caminho a ser seguido. Nesses casos, algumas famílias com a concordância da escola optam por recorrer administrativamente às Diretorias de Ensino e aos Órgãos Centrais da Secretaria da Educação que acabam enviando os casos concretos para decisão do Conselho.
É interessante registrar que em algumas situações os processos vêm instruídos com manifestação dos órgãos técnicos da própria Secretaria (especialmente do Centro de Atendimento Pedagógico Especializado – CAPE) que consideram a proposta da família apoiada pela escola como o melhor caminho para a criança. Mas mesmo assim, não se sentem em condições de decidir, pois entendem que a questão não pode ser tratada no seu mérito, mas pelo seu aspecto legal. E também se posicionam pelo envio ao Conselho.
Esses processos, embora abordem o mesmo tema, chegam ao CEE com nomenclaturas diversas por conta da falta de explicitação, por parte do órgão regulador, de como o assunto deve ser tratado pelo sistema. Na maioria dos casos, ao pesquisarmos os pareceres emitidos, verificamos que eles se apresentam como Rematrícula, Manutenção no ano, Reclassificação, Permanência na mesma série ou até como Recurso contra a Avaliação Final.
A título de exemplo citamos alguns pareceres.
– O Parecer 57/2018 analisa a solicitação de permanência de aluno no 1º Ano do Ensino Fundamental por distúrbios motores e psicológicos. O pedido foi instruído com relatórios, declarações, prescrições dos profissionais envolvidos, endossados pela escola e pela família. O Conselho na análise do caso manifestou-se favorável ao pedido da família, isto é, autorizou a permanência do aluno no ano solicitado.
– O Parecer 176/2018 analisa a solicitação de rematrícula no 1º ano do Ensino Fundamental de estudante diagnosticado com autismo. O pedido foi acompanhado por relatório dos profissionais envolvidos e do plano de intervenção e acompanhamento individualizado, elaborado por psicólogos. A manifestação do CEE foi na mesma linha do pedido anterior, pelo deferimento.
– No Parecer 498/2017 a família e a escola solicitam a “retenção” no 1º ano do Ensino Fundamental de estudante também diagnosticado com autismo. É interessante observar, nesse caso, que quando o pedido foi apresentado o aluno já havia sido “aprovado” e matriculado no 2º ano do Ensino Fundamental por determinação da Diretoria de Ensino, mas continuava ainda frequentando o 1º ano por decisão da família e dos profissionais que o acompanhavam. A solicitação teve o mesmo desfecho.
– Parecer 23/2015, Parecer 74/2015 e outros que poderiam ser citados também favoráveis às solicitações e com conclusões nos mesmos moldes dos anteriormente citados.
Em síntese, a análise dos pareceres emitidos pelo CEE no período de 2015 a 2018, que versaram sobre a matrícula de estudantes com deficiência no mesmo ano, mostra que tinham conteúdos muitos semelhantes: instruídos de documentação médica e avaliação psicológica recomendando determinado procedimento, concordância da família e da escola e, todos tiveram o mesmo desfecho, deferimento do pedido.
É evidente que a questão não pode ser analisada somente no que se refere ao encaminhamento de processos ao Conselho e deve ser vista em toda sua complexidade, mas a leitura do processo clarifica os posicionamentos adotados. A questão que apresento é a seguinte: se todos os casos têm o mesmo encaminhamento, por que não são resolvidos na própria escola e precisam chegar à última instância de recurso que é o Conselho Estadual de Educação?
Não tenho dúvidas de que essas situações poderiam e deveriam ser resolvidas no âmbito da própria escola, podendo as Diretorias de Ensino, no máximo, manifestar-se sobre divergências, se provocadas pela família ou escola. As decisões deveriam sempre ter como referência a legislação vigente que estabelece, para todos os segmentos da educação, que alunos com necessidades especiais devem ser tratados como especiais, isto é, de forma diferenciada. Mas o que significa esse tratamento diferenciado? A quem compete decidi-lo? Como compatibilizá-lo com política adotada no Estado sobre a inclusão?
Certamente o que faz com que esses processos cheguem ao Conselho Estadual de Educação é a visão dos órgãos administrativos e técnicos da Secretaria da Educação de tratá-los como retenção, reclassificação ou manutenção dos alunos no mesmo ano. Na verdade, não se trata disso.
Apontam-se também, como causa dessa postura, questões administrativas, como a impossibilidade inclusão no sistema de matrículas de estudantes que se encontrem em anos não compatíveis com a sua idade. As escolas não conseguem incluí-los no sistema, não permitindo, portanto, a permanência no ano cursado. Questão simples de ser resolvida.
O fundamental é que a lei e as normas que a seguiram sejam compreendidas no sentido de proteger a criança com deficiência e incluí-la no sistema educacional, superando a visão excludente do passado. Se pretendemos efetivamente eliminar a visão discriminatória que exclui essas crianças das escolas regulares, o que deve ser buscado pela ação educacional é o que for melhor para a criança e o seu desenvolvimento pleno, dentro da situação concreta em que ela se encontra.
Não se trata, portanto, de “aprovar” ou “reprovar”, nem de “mantê-la” neste ou naquele ano, mas de encontrar o melhor local de convivência dentro do espaço escolar onde ela possa se desenvolver. Isto pode significar que em momentos diferentes ela pode estar com turmas diferentes, realizando atividades diferentes. A rigidez da seriação, necessária para o sistema, não se aplica ao caso.
Nesse sentido, a quem cabe decidir o que é melhor para o desenvolvimento da criança na sua trajetória escolar? Ao Conselho Estadual de Educação? À Secretaria Estadual de Educação?
Se a questão se reduzisse a problemas administrativos ou legais certamente estes órgãos deveriam ser envolvidos no processo de tomada da decisão. Mas não é o caso. O papel destes órgãos deve ser de orientação do sistema e do estabelecimento de diretrizes, não o de analisar casos concretos. Para isso, ninguém melhor do que a escola e as famílias acompanhadas por especialistas. Tratar uma criança que se encontra numa situação especial sem considerar a relevância dessas manifestações, não é incluí-la, mas excluí-la.
Existem várias decisões judiciais que determinam que a criança com deficiência seja matriculada no ano compatível com sua idade e tenha o acompanhamento permanente na escola de um cuidador e um pedagogo para atendê-la individualmente em todos os momentos. A isso chamamos orgulhosamente de “inclusão”. Nada mais excludente.
E como atender a legislação que obriga a não interrupção dos três primeiros anos do Ensino Fundamental, à progressão continuada e demais normas que muito sabiamente têm combatido a reprovação?
Insisto mais uma vez: não se trata de reprovação, manutenção no mesmo ano, nem de interrupção de trajetória escolar, mas de buscar a melhor condição do desenvolvimento da criança dentro da estrutura da escola. Nesse sentido, estas normas não se aplicam.
Evidentemente que as escolas não podem buscar a saída cômoda de manter todos os alunos com dificuldades cognitivas sempre na mesma série, privando-os da relação com outras crianças de sua faixa etária. Isso significaria a negação da inclusão e o retorno a um modelo ultrapassado. Muitas vezes as famílias têm dificuldade de compreender esse novo conceito e, nessas situações, a escola tem o papel orientador, mostrando a importância da evolução escolar como condição de pleno desenvolvimento. Nesse sentido há que se analisar caso a caso.
Concluindo, entendo que a adequação na estrutura escolar da criança com deficiência, independente da sua idade, deve ser uma decisão conjunta, da escola e da família, orientadas por especialistas que acompanham o estudante. Ela deve buscar sempre o que melhor contribuir para o seu desenvolvimento integral. Quando houver divergências relevantes em relação ao caminho a ser seguido, a escola ou a família poderá solicitar apoio à supervisão de ensino e aos órgãos técnicos da estrutura da Secretaria da Educação para a devida orientação.
O que deve ficar claro para todo o sistema, no meu entender, é que a seriação dos alunos com deficiência em seu desenvolvimento é uma decisão que só pode ser tomada no âmbito da escola, com a participação da família e dos profissionais responsáveis por seu acompanhamento. Só assim estaremos contribuindo para a efetivação da inclusão de todas as crianças no nosso sistema educacional.”
(*) Francisco José Carbonari foi membro do Conselho Estadual de Educação, professor de filosofia com especialização em filosofia e história da educação pela Unicamp. Foi também professor de instituições de educação básica e superior de São Paulo e Jundiaí e diretor da Faculdade de Educação Padre Anchieta.
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