A rotina mudou de um dia para o outro, com a quarentena e as medidas de distanciamento social necessárias ao combate à Covid-19. A escola estava lá, no mesmo lugar. As salas, prontas, limpas, organizadas. Os pátios, livres. As equipes, preparadas. Havia, no entanto, uma ameaça no horizonte – a pandemia do novo coronavírus. Num prazo muito curto, a gravidade da crise levou as autoridades sanitárias a interromper as aulas.
Os atores principais da escola foram então impedidos pela pandemia de desempenhar as suas respectivas funções. Nada de alunos, professores, coordenadores, funcionários. Tudo o que era presencial passou para o ambiente digital. Aulas ‘olho no olho’ foram substituídas por atividades não-presenciais.
Estava configurado um cenário que não fora antes imaginado por ninguém. Foi um choque para toda a comunidade. A começar dos alunos e de suas famílias, além da própria escola. Famílias e instituições de ensino conviviam até então dentro de um bem conhecido modelo histórico, no qual o espaço escolar era peça-chave por representar um outro ambiente, externo à casa, tão importante para a convivência social e a aprendizagem. Nesse arranjo, famílias e escolas dividiam funções, compartilhavam valores, objetivos, interesses.
Com a quarentena, isso mudou, lembra Debora Vaz, diretora pedagógica do Colégio Santa Cruz. Não há mais a presença física do aluno na escola. Ele passou a ficar o tempo todo em casa, dividindo espaço com irmãos e pais, num esquema de vida pouco experimentado até então, salvo no oásis das férias. “É legítimo e saudável que as famílias e as próprias escolas sintam falta daquilo que estava bem-dividido e bem-resolvido”, aponta Debora.
Do ponto de vista da escola, o desafio foi grande mesmo para instituições como o Santa Cruz que se debruça sobre o universo digital há mais de 20 anos. “Apesar de toda a nossa experiência nesse campo”, relata Debora Vaz, “não foi tão simples quanto virar uma chave”. Foi preciso recorrer à “força da equipe” – o que inclui professores, coordenadores, auxiliares, equipe técnica e funcionários – para fazer frente ao desafio e oferecer o melhor aos alunos.
O “Santa”, como é conhecido o Colégio, vinha de reflexões e práticas diversificadas envolvendo a cultura digital e a cultura da instituição. A escola preparava-se há muito por meio de um estudo sistemático desse tema. As fontes e referências eram e são bem conhecidas por suas pesquisas e obras, envolvendo nomes como David Buckingham, diretor de um importante centro de estudos de mídia e cultura digital da Universidade de Londres, Flora Perelman, professora da Universidade de La Plata na Argentina, Beth Almeida, da PUC-SP, entre outros.
Cultura digital não se resume a tecnologia
O Núcleo de Cultura Digital não atua como um simples apoio nas questões de tecnologia. É um centro que promove formação, intervenção e interlocução com a escola sobre os efeitos da cultura digital no projeto curricular e na instituição como um todo. “Quando falamos de cultura digital já nos descolamos da ideia única de tecnologia”, contextualiza Debora Vaz. Saiba no quadro ao lado quais são os objetivos do currículo digital do Santa Cruz, segundo o coordenador do Núcleo, Moises Zylbersztajn.
Na passagem do presencial para as atividades não-presenciais, a Equipe do Colégio procurou desde o primeiro momento orientar-se segundo os princípios e os elementos norteadores que são a razão de ser da instituição. Um deles é a diversidade da Equipe. “Diversidade na excelência, diversidade na competência”, ressalta Vaz.
“Não defendemos um modelo único para todos os professores”, aponta a diretora. E isso foi decisivo para as primeiros momentos da quarentena. “Consideramos que o perfil e o saber específico de cada professor precisam aparecer, devem estar visíveis na formulação das atividades”.
Depois de adotada a quarentena, a escola organizou núcleos emergenciais. “Tínhamos também acabado de finalizar um grupo de estudos sobre esse tema com a participação de 90 professores”, lembra a educadora. Grande parte dos professores já dispunha de boa estrutura em termos de recursos digitais em casa. Para aqueles que tinham computadores mais antigos, a escola forneceu equipamentos atualizados. Uma equipe robusta de educação digital com membros distribuídos por série foi montada para apoiar os colegas.
“Organizamos em tempo recorde um site chamado Santa Virtual, que é onde publicamos todas as boas práticas”, conta a diretora. Cada segmento produziu e organizou sua produção em seus próprios ambientes de ensino virtual e também no Santa Virtual. Tudo para favorecer e estimular uma troca mais intensa entre os professores. “A natureza colaborativa do Santa Cruz e o princípio humanista presente nas relações prevaleceram mais uma vez”, relata Debora.
O Santa Virtual reúne tutoriais bem-elaborados e uma série de conteúdos pedagógicos em formato digital. “Os professores mais experientes ajudaram os mais novos a compreender esses tutoriais”, lembra a diretora. “Foi uma lindeza”.
Um outro setor que entrou ativamente nesse processo foi a Biblioteca, que se organizou como uma grande curadoria de conteúdo e um polo de centralização de tudo aquilo que envolvia a cultura do escrito, ainda que em suporte digital.
Debora conta que até a segunda semana da quarentena, a equipe da Escola já havia produzido mais de 80 objetos digitais de literatura só para o Fundamental 1, fora os disponíveis nas redes e nas editoras que abriram os seus arquivos. A Biblioteca organizou um núcleo central dentro do Santa Virtual tanto de curadoria quanto de centralização de todo esse saber letrado em suporte digital.
Do mesmo esforço participou o Nupi, Núcleo de Práticas Inclusivas do Santa, que tem uma equipe de coordenação, assistentes e estagiários. Esse Núcleo deu logo início ao trabalho de suporte aos professores no planejamento de práticas inclusivas focado nos alunos, em iniciativas que ora são coordenadas pelos professores ora pelos membros do Nupi. “Ninguém poderia ficar de fora”, sustenta Debora Vaz. “Todos são alunos do Santa”.
Nada de replicar aulas presenciais no digital
A Equipe do Santa Cruz entendeu desde o início que não era o caso de replicar as aulas presenciais no ambiente digital, simulando a escola tal como existia antes da quarentena. Esse modelo não funcionaria bem para as características da instituição e não se coadunava com a sua cultura pedagógica.
O caminho foi usar todas as plataformas e ferramentas digitais já utilizadas pela escola, com alternativas e soluções pedagógicas diversificadas cuja montagem contou com a participação decisiva dos próprios professores. A busca por novos recursos e ferramentas nunca termina.
A partir do Ensino Fundamental 2 até o Ensino Médio, as lives ou encontros “síncronos” acontecem todos os dias. Mas o objetivo aqui é muito mais o de promover a colaboração, a troca e a síntese entre alunos e dos alunos com os professores.
“Não queremos substituir ou simular um horário único o tempo todo, um momento real e imediato de aula”, explica a diretora pedagógica. “Continuamos, por exemplo, acreditando na importância da aula expositiva especialmente se ela deixar espaços para o diálogo, a troca de olhares, os estranhamentos, as contribuições dos alunos.”
Moises Zylbersztajn, coordenador do Núcleo de Cultura Digital do Santa, acrescenta: “às vezes nem é uma videoconferência, é um fórum em que o professor cria e fica de plantão naquele período para conversar com os alunos”.
Para oferecer o necessário conteúdo curricular, professores gravam aulas em vídeo e encaminham sequências didáticas aos alunos. “Desde o início, as equipes acompanharam a regulação nas áreas e disciplinas e na proposição de conteúdos que coubessem na rotina dos alunos”, lembra Moises. “Aos poucos, passamos a compreender o ritmo mais adequado e a planejar as atividades em prazos possíveis e bem distribuídos.”
Plataformas: Moodle e Google Sala de Aula
A plataforma mais utilizada no Fundamental 2 e no Ensino Médio é o Moodle. Ela foi escolhida porque permite uma “conversa” com outras plataformas e recursos. “Essa flexibilidade nos agrada muito”, aponta Debora Vaz. Moises Zylbersztajn dá mais detalhes:
– Vivemos há 15 anos dentro do Moodle. Professoras do Fundamental 2 e do Médio publicam há muito tempo conteúdos complementares, sugestões, aprofundamentos, ampliações dentro do Moodle de cada curso. Quando se trata de uma atividade de avaliação, ou trabalho coletivo, eles podem apontar um hiperlink para o Google Sala de Aula. E aí fica misturado, que é o ideal. Procuramos tirar o melhor de cada plataforma.
No Fundamental 1 e na Educação Infantil o Santa Cruz recorre ao Google Sala de Aula como plataforma principal, que se soma a um vasto repertório de recursos e ferramentas digitais. Debora Vaz dá mais detalhes:
– Em todas as séries usamos inicialmente a força das equipes para produzir objetos digitais, aulas, sequências que pudessem servir para a sua própria sala de aula e, também, para serem compartilhados com os colegas. Há materiais compartilhados entre os professores de cada série e há outro tanto que é de autoria local e original de cada professor de sala. No 1º e no 2º anos, o mesmo modelo, o Google Sala de Aula. No 1º ano, como os alunos ainda não têm autonomia plena para usar esses recursos, precisamos contar com a mediação de adultos (pais ou outros familiares). Trabalhamos bastante para não confundir a necessidade da presença de um adulto com convocar o pai a ser professor. A gente não quer isso. Eles devem apoiar a mediação.
Currículo publicado na nuvem e avaliação
Um dos efeitos inesperados, e positivos, da quarentena e da migração para o digital é lembrado pelo coordenador do Núcleo de Cultura Digital. Moises Zylbersztajn revela que “parte do currículo da escola está agora publicado em suportes, telas que adentraram às salas, quartos, cozinhas…”. Esta é uma oportunidade para que os pais conheçam em detalhes o “conjunto da obra” do Santa.
Nesse novo momento, professores e coordenadores são estimulados a olhar permanentemente para esse acervo e a pensar sobre ele, de forma a superar desafios e a propor novos caminhos. “Esta é uma marca identitária do Santa”, afirma Moises.
A avaliação foi outra decisiva atividade pedagógica a sofrer enorme impacto com a migração para o digital. “Não adotaríamos um modelo único de avaliação”, explica Debora Vaz. “Isso quebraria um princípio da escola que acredita nas avaliações parciais, processuais, que valoriza a ideia de que os professores das áreas e das disciplinas têm saberes muito específicos sobre avaliação que precisam ser levados em conta”.
Para Debora Vaz, a avaliação deve considerar um dos “eixos fundantes” do Santa Cruz. A Escola “aposta muito na formação acadêmica bem construída, sólida e complexa”. E, simultaneamente, dá valor à formação de um aluno culto, crítico, sensível, aberto à música, à literatura, às artes plásticas, às artes em geral. Diante desse cenário, um único modelo de avaliação não seria suficiente.
Moises Zylbersztajn acrescenta outras reflexões. Na quarentena, os alunos consultam os colegas, a internet. Nessas circunstâncias, como produzir uma avaliação sobre o que eles aprenderam? “Precisamos talvez de avaliações que abram caminho para que os alunos possam pensar por conta própria e apresentar reflexões originais e pessoais que naturalmente não são passíveis de plágio”.
Moises acredita também que é importante pensar em modelos de avaliação mais coletivo, menos individual. Como os alunos estão conectados entre si, talvez a avaliação devesse levar em conta os trabalhos mais coletivos. “Como podemos aproveitar melhor esse poder do coletivo?”
A importância crescente da escola
“A quarentena não vai durar para sempre”, brinca Debora Vaz. O importante, ela acredita, é ampliar a escuta, compreender as demandas dos professores, dos alunos e das famílias, agir em consequência desse aprendizado e manter-se sempre aberta às mudanças da realidade. “A atitude do Colégio Santa Cruz é uma atitude aprendente”.
– Estamos melhorando as nossas práticas, ampliando as escutas, formulando perguntas cada vez melhores para a equipe, os alunos e os pais. Tudo isso para poder aprender sempre. A escola faz falta na vida das crianças, dos jovens e dos adolescentes. Queremos fazer dessa experiência um momento de aprendizagem.
Moises Zylbersztajn segue o raciocínio:
– É uma situação que potencialmente nos permite avançar em relação à cultura digital, sem abrir mão, no entanto, do legado e da importância da construção histórica da escola. Todos, sem exceção, estamos sendo chamados a lidar com gestão de informação, documentação, arquivos, vídeos, produção, publicação, consumo de material digital. A fluência digital possibilita um uso mais intenso, inédito, que não existiria se não houvesse essa crise. Diria que reconhecemos as conquistas e faremos uma grande reflexão sobre as aprendizagens possíveis em meio a essa importante crise mundial.