Criança namora? Uma pergunta que volta e meia, volta.

por Escola da Vila

 

Esse tema vem a calhar particularmente neste mês de junho, quando se comemora o “Dia dos Namorados”, e também porque, neste ano, o tema já foi pauta de conversas realizadas por mim, orientadora do Ciclo 2 (1º a 3º anos) com famílias, professoras e professores. Mas isto é algo para se preocupar? Esse tema está surgindo muito cedo? Não! Na verdade, conversar sobre isto com as crianças, suas famílias e a equipe da escola é justamente um sinal de que as coisas estão caminhando bem.

Assim, para pensar sobre o título deste texto hoje, preciso fazer, pelo menos, três considerações iniciais:

  1. A infância: o que a caracteriza, seus marcos, as idades que ela compreende, entre outros aspectos. A infância não foi sempre a mesma ao longo da história da humanidade e nas diferentes regiões do mundo. Só essa constatação já rendeu diversos livros, variadas dissertações de mestrado e teses de doutorado nas áreas de psicologia, pedagogia, ciências sociais, medicina, entre outras, nas universidades.
  2. Atualmente, há quem diferencie os 12 primeiros anos de vida até a adolescência, divididos em dois grandes grupos de 6 anos, e há quem subdivida esses dois grupos em subgrupos menores.
  3. As infâncias: independentemente de qual conceitualização se usa, são marcadas pelas primeiríssimas explorações, experimentações e descobertas em relação ao mundo.

Em abril de 2010, Fernanda Flores escreveu um texto para o blog intitulado “Criança namora?” falando sobre o nosso posicionamento aqui na Vila com relação a “namoros” na infância, em que disse:

[…] na escola, deixamos claro para nossos alunos que namoro não é algo do universo infantil e que o que vivem com seus colegas são relações de amizade, de descoberta de afinidades, intensas e mutantes, parte integrante da vida de crianças!

Lá, naquele momento, mais precisamente na própria semana da postagem, o texto repercutiu e gerou um debate que durou mais alguns dias de forma pública e on-line no próprio blog. Principalmente, mães e educadoras se arriscaram a publicar o que pensavam sobre o tema:  

Não sei se concordo com este discurso de ‘criança não namora’. Sou educadora e, quando criança, tive meus namoradinhos ([…]. Vocês discordam?

pra minha filha, por exemplo, o beijo na boca é algo tão escatológico e nojento quanto ‘xixi, cocô e pum’, o que evidencia o quanto essa ação não faz sentido para ela.

O interessante a observarmos aqui é como este tema é polêmico, em seu sentido mais puro: gera inquietações, leva a reflexões, a se lembrar da própria experiência quando criança, toca na vida pessoal e na vida profissional de alguns e traz a necessidade de diálogo, de seguir pensando sobre.

Quando dizemos que “criança não namora” na escola, em geral, com essa frase, não queremos encerrar a conversa com elas e com as famílias, mas, sim, iniciá-la. E aqui é importante situar: normalmente, o assunto surge como tema de conversa em casa, na escola ou entre as crianças por volta dos 6, 7 anos e segue até os 8, 9 anos. Isto ocorre à medida que as crianças dessa faixa etária vão vivendo intensamente suas relações afetuosas na escola. O convívio diário com as outras pessoas, mais velhas, mais novas ou da mesma idade, seja na hora de brincar ou na hora de estudar, gera uma série de descobertas, dúvidas e sensações. Assim, as crianças vão gradativamente aprendendo a entender e reconhecer essas situações e esses sentimentos, bem como a lidar com eles.

É nesse contexto que está a riqueza do encontro entre as crianças em um ambiente coletivo como a escola: alguém que é um pouco igual, mas também um pouco diferente de si, que desperta ideias e emoções inéditas até então, na medida em que este convívio se dá com “outros” que não são do núcleo familiar, com posições e relações já estabelecidas e de certa forma organizada. Por isso, não adianta dizermos simplesmente “criança não namora”. Os sentimentos vêm, e é preciso dar ouvidos, ajudar as crianças a entender e nomear o que sentem.

O que uma criança de 7 ou 8 anos pode sentir por outra de uma idade próxima? Boas doses de identificação, ao brincarem das mesmas coisas e observarem gostos pelos mesmos brinquedos, pois ela/ele também tem uma pasta pokémon, assiste ao naruto e gosta de basquetecuriosidade, ao se deparar com experiências de vida diferentes das que tem, como viver com pais separados; alegria, ao rirem juntas por causa de uma piada que uma delas tenha contado; medo, ao empurrá-la por não conseguir dizer que ficou chateado com algo que ela fez, e pensar que aquela relação pode mudar, estar em risco; apreço, por vê-la sendo corajosa ao falar para um menino ou uma menina da perua parar de apelidar as crianças mais novas… há inúmeras possibilidades! Inclusive achar bonita uma outra criança, ou mais bonita do que as outras. Notar que é muito boa no jokenpô, mas, mais do que isso, perceber as qualidades dela, como ser generosa e dividir sempre seu coelhinho da Mônica com todo mundo para brincar; finalmente, sentir admiração, por vê-la se arriscar a falar em inglês na frente de todo mundo, mesmo com vergonha.

Ocorre que, muitas vezes, as crianças e nós, familiares ou educadores e educadoras, confundimos o nome do que está acontecendo nessas situações. Experimentar todos esses sentimentos na infância não significa que as crianças estão começando a namorar, que estão apaixonadas e que vão iniciar sua vida amorosa.

Nas infâncias, o nome de tudo isto cabe dentro do que é amizade e do que é a descoberta dos sentimentos. 

Em sua postagem de 12 anos atrás, Fernanda colocou duas provocações que ainda hoje são pertinentes:

Porque não atribuímos à relação de amizade entre duas meninas que se gostam, que trocam presentes, o nome de namoro? E aos dois meninos que não se desgrudam e que têm entre si forte cumplicidade e prazer em estarem juntos dentro e fora da escola?

Mais do que saber se as crianças vão ou não vão ser amigos ou namoradas no futuro, essas perguntas nos fazem entender a nossa responsabilidade na qualidade de familiares e educadores e educadoras, ou seja, o quanto nós vamos interpretando e atribuindo sentidos e significados do mundo adulto para vivências infantis.

De certa forma, é natural haver tal confusão na medida em que estamos imersos em um caldo histórico-cultural que impacta a nossa subjetividade e a dos pequenos e das pequenas, indo dos conteúdos audiovisuais que consumimos às relações familiares.

Naquela época, uma outra mãe trouxe uma reflexão sobre a influência da televisão e a importância de cuidar do acesso aos conteúdos inadequados para a faixa etária:

Em casa, minha filha de cinco anos quer assistir aos mesmos programas na televisão que o seu irmão, de 12 anos. Procuro explicar que esses programas não são para a sua idade, proponho jogos e brincadeiras neste horário. Às vezes ela aceita e vamos brincar, outras vezes cheguei atrasada em casa e, pronto, lá está ela assistindo às ‘novelinhas’ com beijo na boca, namorados… Acredito que muito dessa ‘dinâmica precoce” vem da televisão.

Hoje, para além da televisão, temos a internet, os streamings diversos, o YouTube, de modo que o acesso a outros conteúdos erotizados foi facilitado e tem ficado, cada vez mais, fora do controle das famílias, o que faz com que seja ainda mais importante e necessário poder falar com as crianças sobre temas como namoro e sexualidade, inclusive para lembrá-las de que cada coisa acontece em seu tempo.

Não à toa temos uma preocupação com a erotização, a adultização e a sexualização da infância, temas que nos dedicamos a refletir em equipe na Vila das Infâncias. Os três termos dizem respeito à antecipação de experiências da vida adulta, e o namoro pode ser entendido justamente como “queimar a largada” das etapas de desenvolvimento da vida.

Nesse sentido, o “brincar de namorar” precisa ser observado atentamente por educadores, educadoras e famílias. Sabemos que muitas das aprendizagens das crianças acontecem através da observação e da atuação através da imitação. Mas quanto menor elas forem, menos compreensão terão sobre os significados dos comportamentos adultos relacionados ao namoro. Sandra Nascimento, psicopedagoga e mãe de ex-alunas, escreveu naquele momento de debate:

Fico pensando em como os tempos estão deslocados hoje em dia: as crianças querem logo crescer e virar adolescentes, e os adolescentes nunca querem ser adultos e assumir as responsabilidades do mundo adulto.

Hoje em dia já se fala em ‘adultescência.

Muitas crianças não são mais ensinadas a esperar pelas conquistas que têm quando crescem, porque quase tudo já lhes é permitido de alguma forma na infância: uso de celular, namorar, usar roupa com estilo adulto, maquiagens, ver novelas, etc…

O querer imediato roubou o lugar do desejar. Muitas vezes estes ‘quereres’ são prontamente atendidos em nome de não frustrarmos nossos filhos, sem nos darmos conta de que a frustração é terapêutica e necessária para o crescimento.

Ensinarmos nossos filhos a esperarem o que é para cada idade, dá vontade de crescer de forma sadia, assim como se ensina a focar no que é de fato para cada idade.

Assim, 12 anos depois, seguimos defendendo que criança não deve namorar, na qualidade de uma ação, um comportamento, que tem seus impactos e suas consequências. Mas a criança experimenta, ainda na infância, alguns sentimentos que serão a base da matriz de sentimentos que os levarão a namorar no futuro. Portanto, defendemos, sobretudo, que é necessário falar com elas sobre esse tema, pois é realmente no diálogo, podendo falar sobre esses assuntos, ajudando-as a reconhecer e entender o que estão fazendo, os significados de suas ações e conversando sobre os sentimentos ainda na infância, que possibilitaremos que, mais para frente, na adolescência ou na vida adulta, consigam discriminar e compreender o que sentem em relação à outra pessoa, e assim possam se comprometer afetivamente consigo e com o outro em um namoro, entendendo todas as responsabilidades que isso implica.

Além disso, abrir o diálogo sobre este tipo de experiência ainda na infância aproxima as crianças das pessoas adultas, gera confiança, intimidade, aspectos fundamentais de serem semeados antes da adolescência, momento em que haverá maior demanda por independência, crescente autonomia, liberdade e expectativa de responsabilidade, e todos desejamos que um canal de conversa e confiança com os responsáveis esteja devidamente consolidado.

(Imagem: jacoblund/iStock.com.br)

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